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Resenha: Tim Bernardes - Recomeçar

A desordem de sentimentos produzida por Tim é composta por pessimismo, conformismo, melancolia e — um pouco de — esperança.

Recomeçar é um misto de tudo. A mistura de todos os sentimentos despertados pela vivência, seja na solidão, seja na união. Com um estilo Folk único, navegando por músicas simples à sons mais complexos, Tim Bernardes (O Terno) marca sua estreia solo com uma indiscutível obra-prima. Recomeçar convida o espectador a ouvi-lo por completo, de uma vez só, resultando numa experiência sublime de nostalgia e melancolia, um ciclo com começo, meio, fim e recomeço.

Embora a obra traga uma subjetividade perceptível (o que já era de se esperar após 3 meses de exílio no estúdio Canoa), Tim consegue fazer com que cada pessoa se identifique com as canções de uma forma diferente, numa espécie de regressão musical onde o lirismo e os arranjos se encaixam com perfeição, trazendo à tona sentimentos já perdidos (os quais superamos, mas não esquecemos) ou ainda não encontrados (sensações incrustadas no inconsciente, ocultas por camadas de negação e incompreensão).

Distanciando-se da análise com tendência psicológica, é obrigação de todos enaltecer o talento de Martim Bernardes como músico, tanto como compositor quanto como multinstrumentista. Sendo a mente por trás de todos os arranjos do disco, o trabalho de Tim no álbum compreende a gravação de voz, coros, violões, guitarras, pianos, bateria, baixo, órgão, mellotron, percussões, autoharp e metalofone - contando com a participação de músicos na gravação de clarinete, clarone, violinos, contrabaixo, souzafone, sax alto, sax barítono, trombone e eufônio. Embora a quantidade de elementos nas músicas possa surpreender os ouvintes de primeira viagem, uma sonoridade semelhante pode ser encontrada em 'Depois Que a Dor Passar', canção do último trabalho d’O Terno (Melhor Do Que Parece, 2016). O uso da harpa como um background instrumental cria uma atmosfera diferenciada para as músicas, que são complementadas com os caprichados arranjos de sopro. Todos os esforços de mixagem (Tim Bernardes) e masterização (Fernando Sanches) são percebidos ao tentar encontrar todos os elementos em cada música. Harpas não apagam violinos, violinos não apagam percussão, percussão não apaga instrumentos de sopro. Numa consonância impecável, todos os sons foram sobrepostos com maestria, apresentados no momento certo, cada um com seu brilho característico.

Capa: Marco Lafer

A primeira faixa, ‘Abertura (Recomeçar)’ é uma exposição instrumental da última faixa. Lembrando composições de filmes, é um verdadeiro convite ao álbum, repleta de instrumentos da música clássica. Com seus primeiros segundos de sutilidade, chega rapidamente ao pico, com violinos e harpa – e uma quase imperceptível vocalização de Tim ao fundo, que muitas vezes no disco lembra de certo momento da carreira dos Fleet Foxes. Outro instrumento percebido ao longo da faixa é o metalofone – uma espécie de xilofone, mas com suas teclas feitas em metal. A música finaliza apenas com o som do piano, em notas oitavadas que fazem a transição para a segunda música. A abertura convida o ouvinte a imaginar o cenário que julga adequado para viajar e deixar a mente produzir o encantamento que bem entender, numa espécie de viagem sem sair do lugar.

‘Talvez’, a segunda faixa, é um autoquestionamento, uma autoavaliação de ações e sentimentos passados. Emanando uma atmosfera onírica, possui uma alta gama de instrumentos e camadas, característica presente durante toda a experiência (fruto da já antiga inspiração de Tim Bernardes em Pet Sounds (1966), um dos mais bem sucedidos dos Pet Shop Boys e do século passado). Na música também são notáveis as vocalizações agudas de Tim, entrando em harmonia com a instrumentalização e criando um estilo que se estende por todo o álbum – deduz-se que há uma grande influência vocal de Jeff Buckley, quanto ao uso de longos falsetes, complementando as melodias.

É com um clima Folk, voz e violão, que Tim introduz ‘Quis Mudar’. A vontade aliada ao receio de deixar para trás, de superar, é a principal temática. Toda mudança implica uma certa disciplina, tanto emocional quanto racional, embora seja inevitável olhar para trás e imaginar como seria tudo se acontecesse de outra forma. É questão de tempo, é questão de costume, “ser é melhor que lembrar”, canta o músico.

‘Tanto Faz’ é um ode à conformidade. É a fadiga de uma luta desigual, do poder nas mãos de poucos, da mudança que nunca vem. Numa condescendência crítica, o incrédulo Tim Bernardes expõe seu pensamento através de uma composição pessimista, incapaz de enxergar justiça ou injustiça num sistema mórbido. A música é grave, dominada pelo violão e por pisadas carregadas de cansaço e frustração. O violino torna-se pungente de forma gradual, com uma agudez que contrasta e incomoda. Este é, talvez, o principal propósito da composição: ao invés de alimentar a conformidade, é explicitar o incômodo, trazer todo e qualquer questionamento necessário na sociedade contemporânea.

“Ela não vai mais voltar. Não tem depois dessa vez. Toda essa gente que passa e me olha não sabe de fato o que quer dizer: ela não vai mais voltar”. Isto foi suficiente para a criação mais taciturna da obra. ‘Ela Não Vai Mais Voltar’ é completamente direta e sombria, e unida à certeza do eu-lírico de que Ela não voltará, a atmosfera é de completa desolação, sem o mínimo vestígio de superação. A música pode ser vista como a lastimável continuação de ‘Volta’, d’O Terno, onde um esperançoso e idealista Tim Bernardes suplica pela volta d’Ela – o que, como é exposto nesta segunda composição, não se concretizará.

Em ‘Pouco a Pouco’, a ideia gira em torno do próprio Tim e sua capacidade de se entender e se aceitar. Como tudo e, principalmente, como o conceito do álbum, é um processo gradual, que envolve tanto uma dose de introspecção quanto uma espécie de empatia, uma compreensão de mundo madura. “Pouco a pouco eu vou me conhecer melhor” é uma das frases mais impactantes da obra inteira, e sintetiza toda a concepção da faixa 6. A música termina numa bela composição instrumental, quase num estilo de marcha circense, composta com a delicadeza do piano e dos violinos em contraste com a levada rítmica e encorpada dos metais.

Já conhecida na carreira solo de Tim (concorreu no Prêmio Multishow 2014 como “Nova Canção”), ‘Não’ foi retrabalhada para encaixar na proposta musical do álbum. De uma canção totalmente acústica, limitada à voz e violão, tornou-se uma canção mais cheia, com elementos de fundo que contribuem com um tom ainda mais melancólico, entrando em total harmonia com a letra. Mesmo com a música sendo trabalhada alguns tons acima em comparação com a primeira versão, os violinos ao fundo logo tratam de arrancar qualquer possibilidade de euforia e excitação positivista da obra. Aos que buscam superar términos e relacionamentos assimétricos, é de se dispensar qualquer recordação da letra da música. A habilidade de Tim para descrever seu sentimento de desolação é tão excepcional à ponto de despertar empatia até nos que nunca sofreram de tal forma – a qualidade lírica é reconhecida até mesmo pelos que criticam o excesso de clichês românticos da composição.

Os três momentos percebidos em ‘Era o Fim’, os quais podem ser classificados em verso, passagem e refrão, sintetizam de forma precisa toda a confusão de pensamentos causada pelas relações de Tim. Nos versos, acompanhado apenas por cordas, Tim compreende tardiamente que a relação chegou ao fim, afirmando que seus sentimentos por Ela eram muito mais intensos. As passagens trazem uma harmonia de vocalizações, violinos, metalofone e harpa, e é nelas que Tim nos apresenta as dualidades no pensamento (relacionando as duas passagens: não iria se entregar, mas perdeu sua própria cabeça e deu seu coração; não iria se apaixonar, mas deu-a tudo o que tinha no mundo). Por fim, o refrão surge como um comboio de harmonias onde Tim exprime “Eu te amo. Não. Eu te amo.” de maneira angustiante. Esse contraste em sua reflexão também vem carregado de raiva (percebida em “Nunca mais ia cantar uma canção de amor” e “E eu venderia a alma pra te esquecer"), demonstrando sua confusão mental num misto de rancor, tristeza, arrependimento e indignação. ‘Era o Fim’ é o conceito de uma obra inteira condensado em uma só canção.

Numa produção mínima — em comparação com outras faixas —,‘Ela’ é a mais simples do álbum. A letra genuína é acompanhada de um arranjo simples, com hammer-ons e fingerpickings que remetem ao Folk. Com sua temática exposta de forma direta e intimista, Tim não hesita em esconder sua preocupação com a personagem que parece mudar sem perceber, agir sem mostrar sua própria verdade aos outros, negando quem realmente é. Por mais que ninguém perceba, Tim ressalta que vê, ouve, sente, diz.

Talvez a música com os elementos mais nebulosos (com uma orientação mais tensa e imprevisível) e o baixo mais valorizado, ‘Incalculável’ segue uma atmosfera de sonho, num ritmo arrastado que relembra o de 'Medo do Medo' ('O Terno', 2014). A faixa diz que o emocional e o racional andam lado a lado, sem a necessidade de um sumir para o outro poder existir. Em resumo, as ações não podem ser completamente baseadas em pensar e calcular — especialmente quando se trata de sentimentos. “A luz do ser humano e o instinto animal talvez não devam se dar mal”.

O instrumento utilizado na faixa número 11 é o Autoharp. Com uma sonoridade estranha aos ouvidos, tem algo que soa como uma fusão de um bandolim de 8 cordas e uma harpa desafinada propositalmente. ‘Calma’ é uma espécie de cantiga de ninar soturna, com várias interpretações ao final. O cenário é um relacionamento quebrado onde os dois, “Desgastados, sem se querer”, estão em uma provável crise. Tim canta sobre valorizar momentos bons, momentos que fazem um relacionamento funcionar e sempre evoluir, e abala com a canção mais terna do disco. A atmosfera criada por alguns instrumentos, em especial o piano, é semelhante à de ‘Daydreaming’, da banda Radiohead.

Foto: John Stan

Uma música que desvia da amostra lírica do álbum, ‘As Histórias do Cinema’ traz um paralelo entre a realidade e o que é visto nos filmes. A rotina pós-sessão de cinema é um retorno à vida, os créditos que fazem esquecer da ficção e retornar à realidade. Ao seguir sua descrição simples, mas cheia de significado, Tim também menciona a Avenida Paulista e suas caminhadas noturnas, o que certamente causa identificação e traz antigas lembranças aos ouvintes que por lá já estiveram. No modelo contrastante dos arranjos, bastante utilizado ao longo do disco, há uma construção que parte do minimalismo da voz com o palm mute na guitarra para a explosão dos instrumentos ao final, libertando a por muitos desconhecida genialidade de Tim como baterista (ele participou do belíssimo trabalho de Pedro Pastoriz, tocando bateria em seu álbum ‘Projeções’, de 2016).

Ao final, relembramos a composição instrumental da Abertura, mas agora com o apoio lírico. “Eu vou deixar ela ir embora. Chegou a hora. Chegou a hora”, é a partir dessa reflexão que Tim monta seu discurso de superação e compreensão de que todo fim vem com um novo início. A letra é simples, mas necessária para transmitir o conceito do álbum por completo, que fecha com um recomeço e com a ideia da “dor que vem para purificar”. O lindo arranjo da música, intercalado entre momentos reduzidos ao básico e rebentos de harmonia multinstrumental, não poderia estar em outro lugar senão no final, e seu nome não poderia estar em outro lugar senão na capa, sendo a faixa-título inquestionável.

Recomeçar arrepia, desperta sentimentos e propõe a renovação. O álbum — nesta ordem — admira, recorda, deprime, fascina e restaura. Cada faixa tem sua identidade e suas singularidades, numa obra plena que leva o ouvinte a lugares perigosos, a sentimentos pessimistas e consternados, mas que são comuns a todos que vivem. Viver é sentimento, e Tim Bernardes expõe em Recomeçar o que muitos sentiram, sentem ou ainda vão sentir. Essa identificação só é criada por verdadeiros artistas, gênios que transformam o sofrimento em arte.

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