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Conto: A Outra Realidade

Tudo existe, até a própria ilusão.

Estrada E20, na altura de Limerick, Irlanda. Seus 1880 km se estendem por 6 diferentes países na Europa, o trajeto é uma eternidade. O rádio tocava um swing jazz antigo e ali estava eu, sozinho na minha velha Crosley amarela, com pouco combustível e muita fome. Havia comido um sanduíche de banana, estranha combinação do povo irlandês, mas já não tinha mais energia suficiente para manter os olhos na estrada. Era tarde, os ponteiros do relógio marcavam 2 horas e a única fonte de luz no caminho eram os meus fracos faróis. As doses de Whisky que havia bebido no caminho já não faziam mais efeito, até hoje me arrependo de ter comprado aquele destilado de teor alcoólico praticamente nulo. O frio e o breu total tomaram conta da paisagem. Meus dedos já estavam adormecidos, e minha única opção foi parar no acostamento para alongar e fazer o sangue voltar a preencher as extremidades do corpo. Ao desligar o carro, tenho apenas a claridade da lua para me guiar, escondida entre as copas das altas árvores à beira do longo e isolado fio de estrada. Por um tempo consegui identificar apenas o som de grilos e raposas, nada fora dos padrões de uma madrugada. Minha curiosidade fez eu adentrar na floresta, seguindo uma pequena trilha desgastada pelo tempo. No caminho, alguns pneus velhos, garrafas de água, um par de sapatos surrados e um trapo preso num galho, esvoaçando com a brisa fria. Após uns 3 minutos explorando atentamente, ouvi um som que não pude discernir. Era como se um objeto imenso tivesse passado sobre mim a uma velocidade extremamente elevada. O som não era tão alto, mas a frequência era alta o suficiente para provocar revolta nos tímpanos. Após o estranho evento, percebi que a sensação de desespero havia apenas começado. As raposas já não uivavam, os grilos já não cantavam. O que tomou conta do cenário foi um silêncio ensurdecedor. Eu não podia dizer o que estava acontecendo, tampouco imaginar os possíveis motivos. Por um momento pensei que o Whisky estava, finalmente, fazendo efeito, mas a sensação do momento era algo que transcendia qualquer embriaguez leve. Eu nunca havia sentido nada parecido: o medo fez minhas pernas formigarem, como se todo o meu sangue tivesse congelado instantaneamente; calafrios em toda a região das costas, que se intensificavam em sincronia com meus lentos batimentos cardíacos; visão periférica embaçada, o que fez com que eu realmente temesse o que poderia estar a minha volta; uma constante sensação de estar sendo observado, cercado por criaturas que me analisavam da cabeça aos pés; uma impressão, por fim, de estar psicologicamente preso. Tentava virar o pescoço e olhar ao meu redor, mas a sensação de pânico se agravava a cada esforço, como se a minha única saída fosse não procurar por uma. Minha visão piorava a cada segundo, e cada segundo durava uma eternidade. Com os olhos completamente embaçados, comecei a enxergar pequenos feixes de luz que se movimentavam por entre as árvores, como se fossem faróis. As luzes eram quentes, avermelhadas, e vinham de todas as direções. Eu, em estado hipotérmico, podia sentir o calor provindo dos raios quando passavam próximos ao meu corpo, enquanto meu coração batia de uma forma assustadoramente lenta. O mesmo som que tinha ouvido antes, retorna. Dessa vez, a sensação é de que ele está dentro da minha cabeça, como se estivesse se comunicando comigo em uma frequência que não somos capazes de compreender. Os feixes de luz se tornam pequenos pontos vermelhos entre as árvores e se movimentam ao meu redor, de longe, me analisando. Nem o pior dos medos traduz o que senti no momento em que uma das luzes se aproximou pelas costas. Não pude vê-la, mas senti. Cintilava temor, carregava todas as coisas ruins as quais já presenciei, trazia à tona todos os meus medos e fobias. Ávida pelo meu espírito amedrontado, perturbou a minha consciência até eu perdê-la. Pela última vez, com o som monstruoso arraigado dentro de mim, questionei minha sanidade. Com o corpo extenuado, senti um último espasmo nas pernas e caí no chão, consumido pelo terror. Quanto tempo se passou? 10 minutos? 10 segundos? Para mim, aquele momento foi perpétuo. Nem a mais vigorosa amnésia me fará esquecer da sensação. Já não ouço mais o som, já não vejo mais a luzes. Ao menos não nessa realidade. Mas convivo com elas. Convivo com elas nos meus sonhos. E nos sonhos, o medo é real. Nos sonhos, o terror é real. A ilusão não existe? Existe, é apenas uma outra realidade.


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