I Saw The Reference #2: A literatura na música
- Renan Lima, Taylor Goulart
- 15 de jan. de 2017
- 6 min de leitura
A segunda edição da série traz livros essenciais que acabaram servindo de inspiração para composições de grandes artistas.

A comunicação entre as artes é sempre um tema muito abordado em várias esferas de discussão. Adaptações de filmes que viram livro, livros que viram produção cinematográfica, contos que viram musicais, peças teatrais que viram música. Cada forma de arte contribui para apresentar diferentes perspectivas e formas de expressão de uma mesma obra.
Nessa edição do "I Saw The Reference", o The Roswell Sound flutua por vários gêneros (musicais e literários), trazendo canções que tiveram livros e contos como fonte inspiratória de seus compositores. Confira:
Nirvana, ‘Scentless Apprentice’
A história de um homem que tem um incrível olfato mas que não consegue sentir o próprio cheiro virou uma pérola na mão de Kurt Cobain. O nome do livro é ‘Perfume’ de Patrick Suskind, que também era o livro preferido de Cobain.
O Perfume – História de um Assassino, do escritor alemão Patrick Süskind, foi originalmente publicado em 1985. O livro é a história de Jean-Baptiste Grenouille, um órfão no século XVIII francês que nasce com um dom extraordinário de olfato, ao conseguir distinguir uma grande variedade de cheiros.
Reza a história que foi Dave Grohl quem apresentou aos restantes membros da banda a secção de bateria e guitarra que mais tarde iriam ser incluídas na versão final da música, enquanto Kurt Cobain se encarregou da letra (foi na verdade a única música desse álbum em que os créditos foram tripartidos).

"Like most babies smell like butter His smell smelled like no other He was born scentless and senseless He was born a scentless apprentice"
Lana Del Rey, ‘Off To The Races’

O título do álbum de Lana, ‘Ultraviolence’, já foi pego emprestado do livro Laranja Mecânica de Anthony Burgess. Mas em ‘Off To The Races’, a cantora usa como inspiração o livro ‘Lolita’ de Vladimir Nabokov, mostrando claramente o modo com o personagem Humbert se aproximava para seduzir a jovem: “Light of my life, fire of my loins, be a good baby, do what I want.”
Lolita é um romance de 1955 escrito pelo romancista russo-estadunidense Vladimir Nabokov. O romance é notável por seu assunto controverso: o protagonista e narrador não confiável, um professor universitário de Literatura de meia-idade chamado Humbert Humbert, está obcecado com Dolores Haze, de 12 anos, com quem ele se torna sexualmente envolvido após ele se tornar padrasto dela. "Lolita" é seu apelido privado para Dolores.
Radiohead, ‘2+2=5’
Thom Yorke usa o livro ‘1984’, de George Orwell para explicar na música ‘2+2=5’ como a verdade é comandada por aqueles que tem o poder e como as regras são feitas para beneficiá-los.
'2+2=5' é o terceiro single do álbum de 2003 'Hail To The Thief', da banda britânica. A canção-tema tem, como todas as canções do mesmo álbum, um título alternativo, 'The Lukewarm'. O título evoca a "novela" de George Orwell, no momento em que o personagem principal admite que dois e dois são cinco, reflexo da sua perda de individualidade.
The Cure, 'Killing An Arab'

O single da banda inglesa traz uma referência um tanto quanto polêmica sobre o romance O Estrangeiro, de Albert Camus.
O livro conta a história de um narrador personagem, Meursault, um homem vivente que então comete um assassinato e é julgado por esse ato. A ação desenrola-se na Argélia na época em que ainda era colônia francesa, país onde Camus viveu grande parte da sua vida.
Porém, a referência trazida por The Cure causou um alvoroço por grande parte da crítica. A canção da banda gerou polêmica por fazer menção ao assassinato de um árabe em ao invés de uma homenagem a obra de Camus. Assim, a banda reformou a música em 2005 escolhendo a referência de Herman Melville em Moby Dick.
"I’m alive I’m dead I’m the stranger Killing an arab"
Led Zeppelin, 'Ramble On'
Além da sonoridade revolucionária, o Led Zeppelin deve seu reconhecimento mundial às suas inúmeras referências à obra O Senhor dos Anéis. A obra de Tolkien se encaixou de forma natural na tradição do lirismo storytelling do Blues. Vale lembrar que canções como 'The Battle of Evermore', 'Over The Hills' e 'Far Away', também são fortemente inspiradas na obra clássica do escritor.

Ramble On, especificamente, é inspirada na aventura de Frodo para retornar O Anel, caracterizado na letra como uma garota. Também é possível identificar uma paráfrase do poema "Namárië", de Tolkien ("As folhas estão caindo por toda parte").
Rubel, 'O Velho e O Mar'

'The Old Man and the Sea' é um romance do escritor Ernest Hemingway, um verdadeiro clássico da literatura. Retrata, de forma sutil e detalhada, a solidão de um velho pescador em alto-mar, que mesmo há 84 dias sem apanhar um peixe sequer, dá uma verdadeira aula de persistência durante o livro. Rubel consegue transmitir todas as sensações possíveis - também presentes na leitura - de uma forma singular.
A pureza dos arranjos, a forma com que a música se constrói, a lenta adição do instrumentos e a letra lembram, de forma subjetiva, algumas passagens do romance.
Mumford & Sons, 'Sigh No More'
A primeira música do álbum de maior sucesso dos britânicos, marca uma pausa do vocalista Marcus Mumford em suas letras com inspiração anglicana, e tem a hilária comédia Muito Barulho por Nada ('Much Ado About Nothing'), de William Shakespeare, como principal fonte de ideias. Na canção, as palavras d'O Bardo são transformadas num pedido de desculpas sincero, com citações diretas da peça.

"É nas falas de Beatriz e Benedicto, dois dos personagens mais queridos do público de Shakespeare, que se fundamenta a parte cômica desta peça" - L&PM. A comicidade do texto é montada em volta da astúcia do casal, que, mesmo apaixonados um pelo outro, negam qualquer tipo de afeto e vivem discutindo de uma forma inteligentemente articulada, com uma tremenda repulsa ao casamento. Essa, porém, é apenas a parte hilária. Inigualável, Shakespeare nunca esquece das dores, dos desencontros e do enredo mais dramático.
Marca registrada da banda, o refrão é o auge indiscutível da música, um verdadeiro coral que convida a todos para o bradarem. O resultado da letra é uma verdadeira ode ao poder do amor e o desejo de o ver realizado.
"Serve God, love me, and mend. This is not the end."
Legião Urbana
É claro que não poderíamos esquecer do honrado Renato Russo, e suas composições no Legião Urbana.
Enquanto estava internado em uma clínica de reabilitação em meados de 1993, Renato Russo escreveu um "Diário de Recomeço" intitulado 'Só hoje e para sempre'. Nele, o músico e escritor retrata uma série de referências a livros que vão desde os clássicos aos livros religiosos.
Abrimos então um espaço para os amantes e leitores incontestáveis celebrarem a obra e dissecarem suas referências nela incluídas.
'Teorema'
Entre inúmeras músicas compostas por Renato Russo que retratam diversos aspectos, a música Teorema relembra o livro, de mesmo nome, de Pier Paolo Pasolini.
O livro do poeta e cineasta italiano conta a história de um estrangeiro que chega repentinamente à casa de uma família burguesa e lá se instala. Aos poucos, ele se integra à vida da família e quando vai embora deixa marcas em cada um dos membros – que acaba se apaixonando pelo jovem. Pasolini dirigiu também a adaptação para o cinema.
'A Montanha Mágica'
Considerado um dos livros mais importantes da literatura mundial, a obra trata de Hans Castorp, um engenheiro alemão, que vai visitar o primo em um sanatório, no qual ele trata de um problema respiratório. Porém, Castorp acaba adiando a sua partida por conta de uma tuberculose. Renato Russo brinca com o título, já que o livro de Mann é considerado um dos mais difíceis de decifrar e a faixa homônima é também uma das mais “misteriosas” da banda.

'Há Tempos'
O ápice de inspirações de Renato Russo não havia chegado, o alvo da vez foi o livro '1984', de George Orwell.
O ano é 1984 e a população é dominada por um partido que cria guerras para fomentar o lucro. As pessoas são proibidas de pensar e se relacionar com outras. Todos são vigiados pelo Grande Irmão. O partido possui o lema “Guerra é paz/ liberdade é escravidão/ ignorância é força”, que serviu de inspiração para “Disciplina é liberdade / compaixão é fortaleza / ter bondade é ter coragem”.
'Monte Castelo'
Ah, Camões... O aclamado escritor do Classicismo foi incrivelmente homenageado por Renato Russo (e por vários outros, ao longo do tempo) em sua música, ao citar o famoso Soneto II.
Os versos “O Amor é fogo que arde sem se ver / é ferida que dói e não se sente” são adaptações do poema português.
A música, assim como a literatura, possui origens remotas que vêm se desenvolvendo e sendo descobertas desde a pré-história, ganhando texturas, sentimentos e emoções. Todas as formas de arte, seja a música, a literatura ou a pintura são constituídas por um misto de técnica e inspiração que dão forma às suas obras. A literatura inspira a música, tal como a música inspira a literatura, e dentro de um emaranhado de referências artísticas, essas produções marcam momentos históricos e passos importantes de nossas vidas.
A arte nos proporciona uma perspectiva diferente da realidade, através do poder de observação, de análise e crítica. Suas diversas funções denunciam acontecimentos, proporcionam uma autodescoberta, e contribuem na melhor compreensão da nossa identidade cultural. Portanto, quando estiver ouvindo aquela música que tanto gosta, corra atrás das suas origens, as referências ou citações podem lhe surpreender!
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